10 de nov. de 2011

Seja um revolucionário. O poder do português inculto!





Certos professores de português vem dando o que falar. E o que escrever também. Eles estão dizendo que escrever errado não é errado.

Exemplo disso é um livro que o MEC distribuiu nas escolas públicas brasileiras. Por Uma Vida Melhor, de Heloísa Ramos e outros autores, explica aos alunos da rede pública que [sic] "nós pega o peixe". Parece estranho? Em sua defesa, a professora disse que não pretende promover a língua informal em detrimento da formal, princípio com o qual concordarei plenamente. E embora ela tenha sido clara nas justificativas, a imprensa, cheia de melindres, está teimando em colar os fatos de maneira parcial.

Descobri que essa história toda começou eras atrás, quando surgiram os seres humanos. Ou seja, em 1941, quando nasceu o grande líder Kim Jong-il. Um arco-íris duplo coloriu o céu anunciando seu nascimento e o surgimento de uma nova estrela na abóbada celeste marcou sua saída do ventre de sua mãe. Ele pronunciou algumas palavras, e todos se prostraram. Estava fundada a linguagem humana.



E aí ele deu uns pegas no Putin e não telefonou nunca mais.



Mas aqui no Brasil a gente tem o Velho Testamento e Tupã pra disputar a origem do mundo, então vamos considerar que a linguagem surgiu quando aprendemos a andar pra frente. Pois bem, de um lado temos os defensores do livro da professora Heloísa, que afirmam que existe preconceito com as variedades da língua. Neste raciocínio, é um equívoco chamar de erradas as expressões de regionalismo e as linguagens características de determinado meio socioeconômico.

De outro lado, temos os defensores da norma culta, geralmente jornalistas ávidos pela integridade do seu chamado instrumento de trabalho - a linguagem -, que explicam que, se cada um falasse da forma que bem entendesse, a sociedade moderna iria à bancarrota. Assim, sem uma linguagem complexa que abarque cada vez mais nossas necessidades, iríamos voltar às cavernas.




Perduram as academias, o avon e a gilette.



Percebemos, de cara, o primeiro problema - a discussão está muito polarizada. Acabamos presos àquele binarismo, em que um lado chama o outro de chato e bobo e vence quem grita mais alto. Esse empobrecimento argumentativo é melhor deixado para casos triviais, como os que ocupam o tribunal penal internacional e o conselho de segurança da ONU. Aqui estamos com um grave assunto em pauta; caber-nos-á uma análise mais carinhosa e ponderada da situação.

Tomemos como exemplo um dos discursos de quem defende a norma culta. Parecem dizer alguns que é uma forma de expressão superior. Ora, a linguagem é algo plástico, que se adequa a situações e muda no tempo e no espaço. Ela é produto de situação. Situação social. Assim, todo padrão de comunicação que surge, parte do mesmo estado virginal, e seus artigos adquirem valor conforme são manipulados e significados, dentro de uma dinâmica social. É assim que muitos usam o padrão da norma culta para ostentar status. Não há um valor intrínseco na norma culta que dota o indivíduo de maior estirpe. Mas o contrário ocorre: dominar algum uso da linguagem é sinal de valor. E, francamente, isso vale pra qualquer domínio. Sabe-se matemática. Produz-se historiografia. Toca-se um instrumento musical.



E pilota-se com os pés. Sério.




É condição insuficiente dizer que quem não domina a norma culta é burro. O exemplo mais caro, e o mais indigesto, é o do presidente Lula. Digam o que for, não há como negar que ele é um cara inteligente. Não é porque "os pobrema" são grandes que "nós deve desistir". Negar a genialidade de um sujeito desses é negar a lua. É um bom exemplo porque demonstra duas coisas: primeiro, que a inteligência não é exclusiva da norma culta; segundo, que o uso habilidoso da norma inculta é sinal de inteligência. O que dizer dos repentistas, dos poetas e dos músicos de raiz? Não são eles um exemplo difuso e numeroso do exercício premeditado, estudado e aperfeiçoado de uma modalidade comunicativa?

É claro que aprender uma língua, especialmente a norma culta, deixa as pessoas mais inteligentes. Estas conclusões todas não deveriam ser surpreendentes. Mas, tristemente, elas o são. Pra muitos indivíduos. Assistir a alguns paladinos da norma culta tecerem críticas vazias é um pesar, pois espera-se uma posição mais lúcida de pessoas que dedicaram grande tempo ao entendimento desta linguagem. Eles enaltecem os grandes autores da norma culta como os únicos profetas da comunicação.



Broder, o drummond só fala em ASCII, ele não te entende!




Confiram este trecho do livro:

“É importante saber o seguinte: as duas variantes [norma culta e popular] são eficientes como meios de comunicação. A classe dominante utiliza a norma culta principalmente por ter maior acesso à escolaridade e por seu uso ser um sinal de prestígio. Nesse sentido, é comum que se atribua um preconceito social em relação à variante popular, usada pela maioria dos brasileiros”


Não posso deixar de concordar em gênero. Mas não posso ignorar o cheiro de uma cilada que insiste em permear este discurso, ainda que os autores não a tivessem plantado de forma intencional. É uma tática do manual extremista criar inimigos imaginários para manter acesa a chama do movimento e legitimar sua ideologia. Em suma, é um sectarismo obsoleto que, vale dizer, aflige tanto as chamadas direita quanto esquerda.

É por isto que alguns usaram do livro da professora um combustível para o embate pueril. Entraram no debate a esquerdopatia e o direitismo tomando como munição o livro para seus esforços. E assim perdemos o cerne da questão - na crítica pertinente do professor Evanildo Bechara: "dizer que a língua culta é um instrumento de dominação das elites é uma ortodoxia política e um obstáculo para o país".



"Não se nós pudermos evitar! Avante, Rangers!"



Alguns fatos: a norma culta possui, sim, muito mais verbetes que as informais. E ela recebe muito mais esforço que as outras para prover uma riqueza técnica. E é mais difundida. É uma candidata ideal para veicular objetivos da sociedade, como funcionar como linguagem comum a todos e servir de base para a linguagem técnica. Digamos que um médico peça o bisturi ao instrumentista, e este passe a ferramenta errada. Vemos aí que normas são necessárias por uma questão de ordem prática. É com esse mesmo princípio que se comunicam os engenheiros, os arquitetos, as indústrias e os físicos.



"Quem chamou esse fantasma? Peraí, Obi-Wan, solta a minha mão!"



Assim, podemos ter várias linguagens para várias circunstâncias. E foi isso o que o livro Por Uma Vida Melhor quis explicar. Uma linguagem não elimina a outra, tampouco é superior ou inferior. Elas possuem tão somente a aplicabilidade contextual. Portanto, uma linguagem técnica assim o é porque assim se quis. E a linguagem informal do dia-a-dia pode não ter surgido de reuniões e seminários, mas suas expressões surgiram de processo igualmente complexo de elaboração, só que em outro cenário. Quantas "piadas internas" ficam só entre você e seus amigos? Quantas expressões regionais surgem, com significados tão particulares, que adquirem uma vida totalmente diversa de sua origem?

A norma culta, como diz o livro, tem o seu lugar: “(...) um falante deve dominar as diversas variantes porque cada uma tem seu lugar na comunicação cotidiana."

7 de nov. de 2011

Liberdade de expressão: liberdade de ofensa?




Problema muito comum entre os humoristas recentes. Até onde alguém tem o direito de expressão? Quando se trata de profissão, tem limites?

Rola no facebook o viral em que o Rafinha Bastos se mete numa grande encrenca. Soltando uma frase sobre a gostosura de Wanessa Camargo grávida, ela compra briga e entra na justiça exigindo R$ 100.000 de indenização (que irá doar a uma instituição de caridade, caso vença, explicou ela).






"Comeria ela, e o bebê". o.O



Vamos, vamos. Não acho que ele quis dizer que tem fantasia com relação ao neném. Pedofilia? pfff... Pessoal está viajando na marionésia com os comentários que eu vi na internet. A gente tem que esperar de tudo nessas mídias sociais. Ele só quis dizer que ela é tão bonitinha que não se importaria com a gravidez. É comum o homem perder um bocado de atração pela mulher grávida. Existe o contrário, os que adoram, tambem. Me parece que ele se expressou como do primeiro grupo.

Baita dor de cabeça pro Rafinha, situação já vivida por Danilo Gentili e colegas do Pânico vez e novamente. A defesa comum usada pelos humoristas é que temos a liberdade de expressão. E ela me dá o direito de fazer o que eu quiser, oras!



"Galera, vamo trollar o holocausto, quem ta comigo levanta a mão"


Será?

Aí é que entram alguns dilemas. Pra me valer da aula de um professor, considere a lei em que é proibido entrar com cães no metrô. Os motivos principais são a higiene pública e a segurança num ambiente apertado em que o animal pode se sentir estressado. Neste sentido, o direito de um dono em andar com o animal publicamente é menor que o direito à higiene e à segurança coletivas.

Agora eu pergunto: e se o dono for cego? O deficiente físico tem direito de socialização como todos. Assim, se ele precisa de um cão guia para se deslocar, a lei buscou compatibilizar o direito à liberdade e à integração social do cego com o direito coletivo à higiene e à segurança. O resultado foi o reconhecimento do cão-guia como animal diferenciado, excepcional. Buscou-se assegurar a excepcionalidade do animal através de certas normas, que exigem o treinamento e a certificação dele para estas funções.



"meu, segura esse touro-guia! Cadê o dono?!"


A filosofia do direito entende que as pessoas são dotadas de propriedades intrínsecas, chamadas direitos fundamentais. Estas propriedades são aplicáveis em todos os sentidos possíveis, pois não se separam da condição do ser humano. Entretanto, na vida prática encontramos um fenômeno muito comum que é o conflito entre os indivíduos no exercício de tais direitos. Chamaríamos isto do dilema da vida social: tudo podemos, mas conviver em sociedade implica nisto mesmo, convivência - em teoria uma dialética de realidades.

E esses direitos fundamentais implicam numa harmonia automática? Olha, afora certos méritos de princípio (em que a análise implicaria na crítica à fundamentação filosófica desses valores), o que podemos responder com presteza é como se processa a harmonia destes direitos nos casos práticos. Independente de fazerem sentido ou não a priori, eles foram dados, portanto: como alcançar a aplicação máxima de cada um?

Se os direitos possuem interpretação horizontal, isto é, se todos são encarados como de mesma hierarquia, não cabendo a maior importância intrínseca de nenhum perante o outro; e se, portanto, os encaramos não como um conjunto, uma lista de elementos, mas uma unidade, esta, sim, passível de diferentes manifestações; então chegamos a uma maneira de encará-los tal que a sobrevalência de um sobre o outro não faz sentido, e escolher um a pretérito do outro quebra o próprio sentido de unicidade. Se a unidade é nula, não há, portanto, direitos que se manifestem. No exemplo do cachorro em metrô, não teríamos, portanto, sobrevalência literal de um direito sobre o outro, mas uma adequação entre as várias facetas de um mesmo objeto. Como uma moeda. Cada direito, portanto, é relativizado perante os demais.

Trocando em miúdos, se você xinga alguém, está ferindo seu próprio direito de expressão. Faz sentido?




Não.


Assim, chegamos à velha máxima de que os direitos não são absolutos. Eles atuam tendo em vista o corpo de onde vem. Um erro muito comum é usarem o direito de expressão como amparo para odiar e, mesmo, agredir a honra de outro. Ora, direito de agredir não é direito. Agredir é agredir, ação pura e simples, que não busca enquanto ação se justificar. Ela se basta a si mesma. Não cabe falar em "direito" de agredir, não faz sentido.


E então? O Rafinha Bastos tem ou não tem direito de ofender alguém? Claro que não!

A Wanessa Camargo se ofendeu. E ela tem direito de entrar na justiça. E o Rafinha tem o direito de se defender. E o juiz vai decidir da cabeça dele e inventar um juridiquês como desculpa analisar os direitos dos dois com ponderação e razoabilidade. A minha opinião sobre ter havido ofensa ou não é: sim, acho que houve. Eu, pessoalmente, entendi a piada. E acho que não me ofenderia no lugar dela. Mas existe a conversa entre amigos que se entendem, e existe a manifestação pública, que exige a atenção a pessoas muito diferentes de você.

E - claro -, existem ofensas e ofensas. Talvez a ofensa seja lícita quando provoque o repensar social. Talvez a questão mais importante não seja nem o princípio, mas a habilidade com que o humorista o aplica, gingando destramente em torno da ofensividade e tecendo sua crítica. Isso diz muito sobre sua competência como profissional. Alguns são tão bons que chegam ao ápice da sutileza.




18 de set. de 2011

Deputados no Inferno























Por Severino Francisco
Estava dormindo em minha cama
atormentado pelas imagens
do cerrado ardendo em chamas
quando tive uma alucinação
senti os pés perderem o chão
e vi os 265 deputados federais
que venderam a alma a satanás
e absolveram Jaqueline Roriz
se dirigindo à sala de um juiz
presos por algemas no inferno
com listras zebradas de presidiários
nos tailleurs importados e nos ternos.
Logo na porta principal da entrada
numa derradeira ação desesperada
a líder da quadrilha tentou comprar
o diabo com uma polpuda propina
mas o capeta cortou o papo da mina:
"Eu sei que vocês sabem subornar,
roubam as merendas das crianças,
superfaturam asfalto e ambulâncias,
e, depois, numa operação patética
presidem a Comissão de Ética
mas vocês venderam a alma para mim
cobrarei a dita cuja tim-tim por tim-tim
sei que vocês são mestres na arte de enganar
mas aqui é diferente, a chapa vai esquentar.
Não tem roda de negociação e nem calma,
vendeu, vai ter que pagar com a alma
o fim do sofrimento está distante
vocês escolheram este caminho
o meu inferno não é um inferninho
é muito pior do que o inferno de Dante.
A turma dos deputados federais
será enlaçada por jararacas,
caninanas, jaracuçus e corais.
Os 62 parlamentares covardões
que não compareceram ao plenário
fazendo o eleitorado de otário
numa atitude tíbia de bundões
serão enleados por milhões de cascaveis
ouvindo música breganeja e bandas covers
o tempo todo a mais de 100 mil decibeis.
Se esconder atrás do anonimato
mentindo, omitindo e compondo
é um ato imoral e o voto secreto
deveria ser sancionado crime hediondo
mas a situação só vai melhorar
quando o povo se conscientizar
e exigir a lei do recall dos políticos
para sanear o espaço público
e fazer uma providencial faxina
em quem paga ou recebe propina.
Se o político vier com defeito ético
ou não tiver nenhuma relevância
perderá naquele instante o mandato
e será devolvido imediatamente
à sua real e irredutível insignificância.
É preciso fazer o retrato falado
dos 265 pusilânimes deputados
que não achando suficiente a verdade
de Jaqueline Roriz embolsando a erva brava
em uma imagem que valem por mil palavras
criaram a jurisprudência da impunidade
e inventaram uma modalidade indecorosa:
a figura jurídica da absolvição criminosa.
'Roubei, mas foi em outro mandato'.
Não há argumento mais cínico e caricato,
daqui a pouco, os maiores meliantes
chegarão ao juiz e confessarão: 'Roubei,
menti, matei, desviei e sou traficante
apliquei o 171 e pratiquei peculato
mas tudo ocorreu em outro mandato.'
Me desculpem se sou franco
mas é preciso separar o joio da farinha
e botar de uma vez por todas na cadeia
ladrões e ladras de carteirinha
ladras e ladrões de colarinho branco.
Se vocês continuarem a me enviar
políticos desta qualidade
vou encaminhar um ofício a Deus
pedindo taxa de insalubridade.
O inferno já está com superlotação
vê se vocês tomam vergonha na cara
e não votem mais em político ladrão,
venal, inepto, corrupto e canalha
tenham misericórdia de um ente
que exerce seu ofício honestamente
também preciso de ajuda
não me mandem esses políticos
mais traiçoeiros do que Judas
ao fim, ao meio e ao cabo,
não passo de um pobre diabo.'
Quando acordei, logo percebi
que os deputados ainda não tinham
ido para o inferno e que o inferno é aqui.

1 de ago. de 2011

A nova educação, em desenho!



Este ótimo desenho é uma palestra de Sir Ken Robinson, um educador. Ele tambem pesquisa muito sobre criatividade e nesta palestra pretende dizer que os tempos estão mudando e o novo século 21 exige um novo sistema de ensino.

Ele critica os paradigmas que vem sendo construídos desde a revolução industrial lá dos séculos passados, e seus argumentos se baseiam justamente nas premissas que foram deixadas de lado na jornada histórica. Sir Ken Robinson não apresenta conceitos novos, mas um resgate deles em ousada e pertinente roupagem. Ele é, fundamentalmente, um crítico.

Fique atento no final, porque tem um exemplo de como a educação ajuda a diminuir uma das capacidades humanas...

26 de mar. de 2011

O problema do Brasil é o brasileiro


Até quando o Brasil continuará refém da corrupção?

O ministro do STF, Luiz Fux, acaba de barrar a lei da Ficha Limpa. Ainda bem!

"Mas ele deu carta branca aos corruptos!", você diz. Deu mesmo? Caríssimos compatriotas, o problema é mais profundo do que imaginamos. Estamos atolados a um ciclo que se perde nos anais da nossa história e se confunde com nossos ideais e tragédias. A decisão de Luiz Fux, de ter feito a lei da Ficha Limpa valer somente a partir de 2012, faz com que Jader Barbalho, João Capiberibe e Cásso Cunha - indivíduos do maior calibre na infâmia por corrupção - tomem seus assentos no Congresso Nacional. Como é sua característica, o STF tomou a decisão difícil. Na terminologia cristã - escolheu a porta estreita.

Não fujamos de nossa responsabilidade. Os corruptos que percebemos no Congresso estão lá porque nós votamos neles. A culpa não é do judiciário por cumprir fidelidade à Constituição.

E botaremos a culpa de nossas fraquezas no STF? Ora, não nos esqueçamos que este orgão tem o dever por excelência de proteger a Constituição. E acabou de fazê-lo! Acompanhem comigo: a lei da Ficha Limpa é uma ótima iniciativa, mas ela não pode prejudicar o direito à ampla defesa (nem abordar de maneira inadequada vários outros princípios, como vem fazendo). Nós maturamos em nossa sociedade, ao longo do tempo, princípios que irradiaram liberdade e dignidade humana a todo o ordenamento jurídico, justamente para nos protegerem de poderes arbitrários e eventuais insanidades. Dizer que um juiz colocou corruptos no Congresso é, antes, mascarar nossa culpa. Pior: exigir de outro modo seria consertar um mal que criamos com um mal ainda pior.

Portanto, se a lei da Ficha Limpa fere estes caros princípios em determinados pontos - como apontaram adequadamente os ministros que votaram contra a implantação imediata da lei -, não devemos nos deixar seduzir por estes atalhos que levarão nossa democracia à falência. Vejam, ela já vale de 2012 pra frente. Ou seja, descortinamos aos poucos um futuro menos negro: demos um passo modesto, mas resoluto, para sairmos do ciclo nefasto que nos acorrentou por tanto tempo. Uma vitória menor do que gostaríamos, concordo... mas merecida e digna de comemoração.

17 de jan. de 2011

Pílula do esquecimento




A moralidade da sociedade vai alterar drasticamente nas próximas décadas.

Cientistas estão no caminho de inventar a pílula do esquecimento - soldados virarão máquinas insensíveis e vítimas de estupro perderão os traumas da noite pro dia.

Será? Avanços na ciência médica vem demandando da sociedade a abordagem de questões morais extremamente sensíveis. A clonagem, por exemplo, levanta perguntas perturbadoras para muitos: será lícito "cultivar" corpos e orgãos para reposição em caso de acidentes e doenças? Considerar-mos-emos clones humanos acordados como cidadãos? O que eles dirão a respeito?

Outras áreas de pesquisa, como a neurociência e a bioquímica, vem oferecendo caminhos promissores para no futuro tratarmos as memórias traumáticas e os sentimentos que poderemos enfrentar em situações desafiadoras. Dos exemplos citados no começo, podemos ter razoável expectativa de tratamentos que literalmente mudem a fiação do cérebro de um indivíduo, tornando-o efetivamente outra pessoa.

Um exemplo é a mudança de memórias. Partindo do princípio que elas são substâncias químicas armazenadas entre sinapses arranjadas de formas específicas no cérebro, se alterarmos essas configurações, abrimos precedentes para a dissolução de informações e até, admitindo técnicas extremamente refinadas, o implante delas. Outro exemplo é o que alguns estão começando a apelidar de "pílulas do dia seguinte". Experiências traumáticas estão intimamente relacionadas ao funcionamento da amídala, glândula que participa da regulagem do medo e vários processos correlatos que acontecem logo após as experiências de um indivíduo. Cientistas estão investigando substâncias que podem ser usadas para afetar essa regulagem. Com isso, espera-se diminuir o impacto de determinadas experiências que, de outro modo, causariam disfunções psíquicas profundas. O passo seguinte na lógica são comprimidos para diminuir a chamada Síndrome de Estresse Pós-Traumático em soldados que invariavelmente presenciam cenas de horror, como a mortandade de civis e as doses altas e constantes de sentimentos agressivos direcionadas ao inimigo; pode-se diminuir o impacto emocional de experiências como acidentes de carro, estupro e sequestro. Os cientistas, até agora, possuem as melhores das intenções. Isso está claro, pois o que motivou todas essas pesquisas em primeiro lugar foi justamente propor tratamentos para essas situações clínicas, que, de outro modo, certamente deixariam a pessoa disfuncional por um extenso período ou, com uma certa frequência, para sempre.

Nada mais louvável, diremos nós!

Isso não deve(ria) ser uma surpresa. Anti-depressivos e ansiolíticos podem ter como efeito o embotamento do indivíduo, dotando-lhe de características semelhantes à dos psicopatas e narcisistas. E este é um efeito premeditado e terapêutico! Não estamos acostumados com isso há somente décadas: desde tempos imemoriais usamos psicotrópicos, seja para fins terapêuticos, seja para fins ritualísticos. De qualquer modo, o processo de alterar a fiação do cérebro ocorre naturalmente em nossas vidas. Experiências nos transformam e digerimos elas. Uma sequência de infortúnios no amor nos leva à reavaliação (ou não). Brigas com os amigos e parentes nos mostram o quanto os outros estão (ou nós estamos) errados. Acidentes nos chamam a atenção para descaso do poder público e da sociedade (ou maus hábitos da nossa parte). E o que foi que passamos em todos os anos de escola? Aprendizado, oras...

Poeticamente falando, temos uma vasta bagagem espiritual para adquirir no caminho da vida. Que mais desejar? Não é esse o motivo que nos colocou aqui? Sermos algo? Mais fascinante do que essa dádiva só pode ser a expectativa de como usufruí-la. O que podemos tirar das nossas experiências? Considerando que temos essa escolha, como eu avalio o que passei? Não é isso que diz o ditado: "eu não controlo o passado, mas o futuro está nas minhas mãos"? Eu posso, afinal, escolher quem eu sou.

E agora, se não pela auto-descoberta, ao menos pela ciência.

Estamos descortinando uma época de eugenia por excelência. Talvez não esteja claro no primeiro momento: temos na ponta das ferramentas a técnica de ditar o que será um ser humano. Em breve, eu sinto que nossos netos escolherão em clínicas de natalidade a cor dos olhos dos filhos, pagarão a la carte pela modificação de genes que predispõem a doenças e a excelências, que os bisnetos tomarão o comprimido da bissexualidade no final de semana pra "aproveitar a festa ao máximo" e os tataranetos poderão se acostumar a uma vida supra-carnal ininterrupta no cyberespaço.

Isso não mascara o fato de que a questão sempre existiu. Escolhemos definir o que é ser humano desde quando - bem -, nos identificamos como tal desde o princípio. O que talvez nos deslumbre seja a intensidade que isso pode tomar. Uma coisa eu tenho certa: a moralidade está cada vez mais dinâmica.

Pra quem quiser saber mais:
pílulas do dia seguinte
terapêuticas para a memória

16 de ago. de 2010

A religião é um mal?

Eu assisti um documentário interessante do Richard Dawkins que procura explicar porque a religião é um câncer que assola a sociedade e porque a fé torna as pessoas ignorantes. Chama-se "A Raiz de Todo o Mal?".

Uma questão que sempre me fascinou é sobre a existência ou não de Deus. Eu não sei me definir a respeito de uma maneira precisa e inequívoca, mas tenho uma boa noção da direção para a qual eu pendo. Sinto uma indubitável inquietação a esse respeito e estou sempre imerso nessa busca, envolto na construção da minha realização espiritual.

E, assistindo a esse documentário, que pode ser tomado como uma condensação de argumentos do livro "Deus, Um Delírio", eu não pude evitar um processo conturbado de, a um só tempo, concordar em alguns pontos, ter ressalvas em vários outros e tambem de sentir uma angústia alheia pelo equívoco (a meu ver) no resto.

A religião ensina o ódio. Certamente. Richard Dawkins percorre os continentes ocidentais e mostra casos, como o de alguns grupos pentecostais americanos, que se valem de um pensamento binário de certo-ou-errado e veiculam por meio de um discurso maniqueísta a descaracterização e desumanização de tudo que não pertence ao restrito mundo sagrado do grupo, gerando assim uma forma atrativa de defesa como resposta aos anseios de minorias ou desiludidos marginalizados, que encontram na auto-afirmação oposicionista, vitimista e agressiva a forma de sobrevivência social e cultural. Isto tambem ocorre em grupos maiores de identidade, como um país. O fenômeno do anti-islâmismo que assola os EUA é exemplo, mas a arquitetura do processo é a mesma: uma auto-afirmação como resposta à conjuntura internacional da ameaça (que, ironicamente, neste caso foi cultivada em boa parte pelo ocidente). Por isso eu concordo que a religião dissemina ódio. Vírgula. Porque aí entramos num ponto muito interessante: ele ignorou deliberadamente todos os outros grupos religiosos que não fazem parte desse processo. Quantas seitas cristãs, por exemplo, não passam ao largo desse cenário político e social de antagonismo e guerra? Muitas, ora.

Eu, na minha experiência, conheço várias que agem diferente dessa postura belicosa e autocêntrica. Um exemplo fora do meu mundo social, que pode ser facilmente reconhecido, é o protesto promovido pelos budistas tibetanos. Esta teve o sucesso de se expressar, em boa parte, de forma não agressiva. Eu tambem não poderia deixar de citar o caso pop de Gandhi: existiam os que queriam se rebelar pela revolução armada e os que queriam de modo pacífico e intelectual. Evidencia-se a complexa dinâmica de uma religião, pois que fenômeno social: existem diversos pontos de vista e modos de direção sob a mesma vertente. E seria reducionismo improdutivo descaracterizar a riqueza de pensamento que compõe uma religião. Seria mostrar o islamismo como aquela seita de homens barbudos e selvagens com fuzis queimando a bandeira dos EUA, e ignorar que é uma religião tão ramificada quanto o cristianismo, com suas inumeráveis manifestações e cosmovisões. É óbvio que nem todo islâmico é terrorista e que nem todo cristão quer queimar gays na fogueira. Seria como dizer que todo brasileiro adora futebol. Selecionar de forma tendenciosa alguns grupos que partilham uma caracteristica e generalizar essa característica para o conjunto é distorcer a realidade do contexto. Para provar que a religião é algo que necessariamente dissemina o ódio é preciso provar que isso vem do seu bojo. A mim me parece que o processo de inimização que contaminou vários movimentos mundo afora é de conjuntura diversa. Em resumo: o ódio é um processo em si, que pode como não pode estar relacionado à religião.

A religião alimenta o sectarismo. Uso aqui o mesmo argumento do item anterior. Gostaria apenas de acrescentar que fiquei impressionado com a forma como o processo de doutrinação pode se tornar insidioso em algumas igrejas. De fato, uma crítica que gostei muito foi quando ele compara a fé a um vírus, e que uma das formas mais fortes de passar esse vírus é dos pais para os filhos. Quando etiquetamos as crianças pelas religiões de nossas famílias e forçamo-las ao convívio exclusivo no meio da comunidade afim (como ocorre no exemplo, as crianças judias ou cristãs indo às escolas judaicas e cristãs), estamos automaticamente tornando-as parte daquele universo restrito. A separação, aparentemente civilizada, de "eu fico no meu canto e você fica no seu", gera tambem a segregação. Assim, do indivíduo é retirada uma riqueza, que é proporcionada pelo crescimento em meio à diversidade. Nela floresce a tolerância, qualidade fundamental em uma sociedade democrática que almeja a fraternidade e as relações de respeito.

A fé torna as pessoas irracionais. Neste ponto do programa, Dawkins aponta casos relevantes de lavagem cerebral e violência emocional experienciada pelos fiéis. Em um centro, adultos e jovens desde os doze anos são expostos a um vídeo que procura ensinar porque você deve evitar determinados comportamentos, que são pecaminosos. Para isso, a técnica utilizada no vídeo é uma espécie de reforço negativo: temor da punição espiritual. São mostradas encenações de pessoas sofrendo as agruras do inferno. Uma adolescente grita desesperadamente por clemência pelos atos perpetrados, mas a audiência sabe que ela passará a eternidade neste estado de sofrimento. A salvação está fora de questão. Uma mãe e a equipe médica encontram-se num estado de delírio e euforia psicótica por terem praticado o aborto. Vozes de agonia e terror pungente ecoam a todo tempo e labaredas de tortura permeiam o cenário. No final, a mensagem é clara: se você praticar algum destes atos, você sofrerá inominavelmente para todo o sempre. Se esta maneira de veicular a mensagem é do tipo que provoca graves preocupações em adultos frente a qualquer situação de provação, o que dizer da mente impressionável de crianças?

Uma especialista ouvida por Dawkins é psicóloga e ela própria passou por essa exposição desde pequena. Quando decidiu se libertar, passou a ajudar na recuperação de outros que saíram do mesmo caminho. O cientista pergunta a ela como foi sentir todas aquelas coisas e ela, com a voz embargada, admite numa honestidade exemplar, que se, mesmo após tantos anos, naquele momento ela ainda achava difícil revisitar as memórias para explicar como foram, tem-se aí a evidência de como as marcas são dolorosas e profundas. O que se tem, no tipo de igreja que proporciona esta formação religiosa, são pessoas que creem firmemente em algo por temor de pensar o contrário. Elas crescem em um meio em que se é encorajado a pensar daquela forma e, ao mesmo tempo, não se pode buscar interação com o mundo externo, porque tudo nele é pecaminoso. Portanto, o indivíduo nunca terá em pessoas de outros meios elementos de descoberta, muito menos contraposição, falhando, assim, numa forma crítica de análise e terminando completamente refém daquele sistema. Ele não conhecerá outra coisa no mundo. Por isso, não admira que determinadas pessoas tenham uma visão tão arraigada e particular das coisas. É, afinal, assim que se constroi um fundamentalista. Creio que estes são, de fato, os indivíduos irracionais aos quais Richard Dawkins gostaria de se referir. O problema é que, mais uma vez, ele cai na mesma argumentação dos pontos anteriores.

Só porque grupos religiosos constroem esse sistema de lobotomização, não quer dizer que todos o fazem. Pessoas como as desses grupos não sabem o que é um debate teológico. Para elas não existe debate. Existe o que está escrito e ponto final. Mas, distante da percepção do cientista, existe uma profusão de debates racionais acerca das doutrinas, em seus próprios meios e longe deles, promovida por religiosos e não-praticantes. Disto chegamos ao próximo ponto.

A religião é ilógica. Muito pelo contrário. Estivesse o biólogo disposto a conhecer os grandes pensadores que deixaram suas marcas desde, mesmo, o cristianismo primitivo, ele teria se maravilhado com a elaboração que é capaz de produzir o racionalismo cristão. Estiveram, por exemplo, em debate, assuntos da mais alta ordem no seio da intelectualidade há dois mil anos. Discutiram Paulo de Tarso e Simão Pedro sobre quais rumos tomar o movimento nascente. O primeiro sentia uma necessidade de distanciar-se da origem judaica, enquanto o segundo sentia o imperativo de apoiar-se no judaísmo e levá-lo a novos precedentes, projetando-o rumo aos novos milênios. Estes dois proeminentes da Igreja germinada, junto a seus partidários, promoveram longos (e por veses acalorados) debates, que não raro percorriam as definições teológicas e doutrinárias, tentando achar uma nova maneira de as dispor. Este foi o primeiro de uma série de debates cristãos, que mais tarde abarcaram uma diversidade infinda de outros assuntos, ecumênicos inclusive, relevantes aos novos momentos sociais.

Percebe-se, disto, como existe o esforço em explicar racionalmente a cosmologia espiritual. É certo que mescla-se a isso o processo político. Não devemos tomar do cunho político e sociológico, entretanto, um caráter contaminador, nem entender que isto torna o debate um pragmátismo terreno em detrimento de uma genuína fundamentação racional. Novamente, muito pelo contrário. É meu entender que estes elementos comunicam-se de forma mútua, sem caber aqui descobrir onde é o ponto de partida ou de chegada. É uma questão como a do ovo e da galinha - não cabe tanto querer responder qual veio primeiro, quanto entender a relação de como um influencia o outro. Portanto, no anseio de responder a questões existenciais, mentes de academicismo por excelência se ocuparam de desbravamento insólito no vasto mundo da racionalidade. Bebeu-se da água dos clássicos para provar, pela lógica, esta ou aquela visão. Dos séculos seguintes podemos citar os famosos Ário e Atanásio, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Todos se basearam profundamente na filosofia grega e romana. Dizer, então, que a religião é um vírus da irracionalidade denota superficialidade por parte do biólogo.

É ao, afirmar ilógica a religião, que Dawkins se vale de uma cilada costumeira - ao entrar no debate com o pastor ou líder, ele busca uma reação tal para mostrar que ele, o cientista, o ateu, o racional, acredita em evidências e fatos e que o outro, o religioso, o fiel, o irracional, o intransigente e o acrítico, acredita em algo simplesmente porque disseram-no assim. Quer tentar demonstrar Dawkins, além disso, que acreditar em fatos e evidências é ser racional. Mas ele esquece que o empirismo, que se baseia em fatos e evidências, não é a única forma de racionalismo. Existe tambem o outro lado da moeda, por assim dizer, que é o sistema racional-dedutivo. Além de ele aparentemente não compreender as delimitações do empirismo, ele ignora sua contraparte. É por meio do sistema dedutivo que conseguimos - numa forma didática de explicar - descobrir várias verdades. Foi por meio dela que o próprio Karl Popper sedimentou as bases da ciência contemporâneo. Os filósofos cristãos anteriormente citados tambem se valeram do sistema dedutivo. Como acusá-los irracionais, quando se empenharam com as mesmas ferramentas lógicas que deram molde à ciência de fatos e evidências?

Daí surgem lacunas na argumentação de Dawkins, que são falhar em reconhecer formas diversas de racionalismo além da ciência, falhar em demonstrar como a ciência pode responder questões existenciais dos seres humanos e explicar porque as pessoas devem ser obrigadas a descrer em Deus para encarar melhor a vida. Ele admite consigo, a certa altura, que Deus é algo para além da ciência responder (veja, isto não é o mesmo que dizer que a ciência desprova Deus; é dizer que, com base na ciência, não podemos criticar a crença de outrem em Deus).

Ciência e fé podem ensaiar caminhada conjunta. A religião não é somente dogma, tampouco se limita a simples fenômeno socio-cultural. Certo é observar que a fé se manifesta muitas vezes como irracionalidade, belicosidade e intransigência. Equivocado é afirmar que todas as religiões assim o são em virtude da interpretação particular e livre de alguns indivíduos e que são intrinsecamente violentas e destilam peçonha na sociedade.

Na minha opinião? Dawkins é agnóstico, mas ele ainda não sabe.